quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Aquele


Sempre fora um sonhador. Tão virado para fora que não saía dentro de si próprio. Sempre tão absortamente ausente do que o rodeava e, no entanto, alerta ao que o rodeava. Explicá-lo é apenas parte do problema. Do desafio que é o seu ser. Não fazia de propósito. Nunca o fez (disse). Era tudo mais forte que ele, como se fosse uma criança que, sempre inocente, se deixasse encantar pelo que o rodeava a ponto de se abstrair precisamente do que o rodeava. [como se vê, eu próprio tenho dificuldade em explicá-lo]

Nasceu com um nome sagrado, da Trindade. Nunca lhe deu importância. Um nome é apenas um nome. Palavras que se associam a uma pessoa, para a identificar. Apesar de o achar curioso, nunca quis saber os detalhes da razão da sua escolha (tinha estes rasgos de minimalismo desprendido). Qualquer coisa a ver com uma história de família do avô materno. Mesmo assim, o sagrado sempre o atraiu. Talvez por sentir que não pertencia a esta realidade, na qual se movimentava pouco à vontade. Não era “religioso” (apesar de baptizado) mas sempre sentira uma reverência — uma atracção? — por tudo o que era divino, misterioso. Isso era algo que o tirava do seu presente. Adorava embrenhar-se nos mistérios que cercavam o oculto. Sentia-se atraído para ele. Mas nunca teve pretensões, ou se deixou transformar (achava ele), por isso. Estranhamente, por vezes até dava a entender exactamente o oposto. Que não ligava a essas coisas. Outra estranheza da sua personalidade conturbada.

Achava, algo frustradamente, como todos os demais, que estava cá por alguma razão, mas que simplesmente ainda não descobrira qual seria. Já tinha vivido umas dezenas de anos (não era fisicamente jovem) mas, talvez finalmente (desabafava de si para si) e até o seu agora, a vida tinha sido uma espécie de encadear de eventos, alguns deles estranhos à sua vontade, outros que lhe iam surgindo à frente como uma espécie de ordem-natural-das-coisas. Algumas das vezes, mesmo, achava que tinha sido conduzido até eles um pouco contra a sua vontade mas tinha-se deixado ir, lamentava-o agora. Afirmação era algo que também não dominara a maior parte da sua vida até então. Passividade? Comodismo? Poupança de energias? Fatalismo? Desinteresse? Um pouco de todas, ao que lhe parecia, pensando em retrospectiva. E não gostava de chegar a essa conclusão. Quem gostaria de admitir que pelo menos metade da sua vida até ao momento poderia ter tido um rumo completamente diferente, se tivesse tomado outras atitudes e decisões?

Nunca tivera paixões. Dignas desse termo. Nem namoros dignos de registo (apenas um; talvez). Nunca lhes tinha sentido a falta, ou impulso para. Tudo o que tinha à volta (e o que construía mentalmente) bastava-lhe. Até neste aspecto tivera um percurso pouco comum. Sempre absorto em algo. Como que à procura nem sabia bem do quê. Casou-se e teve filhos. De novo, a “ordem-natural” a impor-lhe um rumo. Mas a partir de determinada altura (tarde demais?) percebeu que as coisas não andavam bem. Teria aberto finalmente os olhos? Ter-se-ia visto de fora e não só de dentro para dentro? Como teria começado (não se apercebera) o princípio de um fim na sua vida? Nunca o soubera, exactamente. Estas coisas não surgiam de uma linha precisa, como a partida ou a chegada de uma corrida. Desistira de o entender, de o buscar, esse momento de viragem. Mas seria algo de congénito? Talhado para falhar? Ou destinado a rever-se de "fora", para melhor apreender e valorizar o "dentro"? Pensava no futuro...

Entretanto, os dias (os anos) iam passando. Teve filhos. Amava-os muito. Eram o seu orgulho. Dedicara-se muito a eles e a quem dera tudo de si. Tinha uma relação com eles, não do habitual pai-para-filho, mas mais como de um irmão-para-irmão. Não eram seus filhos. Eram os irmãos que nunca tivera e tanto desejara. Se os tivesse tido sentia que poderia ter sido outra pessoa. “Melhor”, pensava. A solidão da infância tinha sido outro peso com que tivera de lidar, especialmente depois de, muito cedo (demasiado cedo), ter saído da vila que lhe era familiar e onde tivera verdadeiros amigos. Amigos com quem fora perdendo o contacto com o passar dos anos. A partir desse momento, marcante, quase que desistira de os cativar, criar relações daquelas que todos gostariam de ter, íntimas, verdadeiras e duradouras. Relacionava-se com os colegas de trabalho, durante o trabalho, e pouco mais.

Como se vê, ele via o mundo sob uma luz algo negra. Enfim, cinzenta, digamos. Mais uma razão para dele se alhear, vivendo no seu próprio, bem mais luminoso e adaptável às suas vontades. Tentando manobrar minimamente bem no mundo dos outros. Um actor num teatro que não era o dele, mas de onde não conseguia sair depois de o encenador o lá ter colocado...

Quando era menino, na instrução primária, detestava fazer as então chamadas “redacções”. E no entanto aqui está ele a escrever estas palavras.
De si próprio.
Hum… Que prazer é escrever…

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