quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

"Só sou exigente com os amigos"

Nunca escondo a minha admiração pelo maior pensador português (ia dizer "de sempre", mas hesito), Agostinho da Silva. O seguinte texto não me consigo impedir de o partilhar. Comprem o livro.

Estou a exigir muito de si? Quem lhe há-de exigir muito senão os seus amigos? Eles receberam o encargo de o não deixar amolecer e, da minha parte, tenha você a certeza de que o hei-de cumprir. Você há-de dar tudo o que puder, e mesmo, e sobretudo, o que não puder; porque só há homem, quando se faz o impossível; o possível todos os bichos fazem. Quando você saltar e saltar bem, eu direi sempre: agora mais alto! Que me importa que você caia. O que é preciso é que você se levante. Os fracos vieram só para cair, mas os fortes vieram para esse tremendo exercício: cair e levantar-se; sorrindo. Já sei que muitas vezes se há-de revoltar contra mim e desejar que eu fosse menos duro e lhe desse uns momentos de repouso; mas do repouso faria você férias e das férias uma vida de gato. Eis o que nunca lhe consentirei. O que é bonito e bom é a vida de cão. O que você vai tirar, se for grande, de roer ossos, e levar pontapés, e beber água das valetas!
Pode ser que, porém, você se revele um cão de luxo; são bichos bastante antipáticos para mim, mas não é por isso que lhes farei mal; pelo contrário. Só maltrato os amigos. Para cãezinhos de pêlo encaracolado e patinhas que mal aguentam o corpo tenho um fornecimento de almofadas, pires de leite, bolacha macia, perfumes, pentes finos e nojo.Um fornecimento inesgotável e que você utilizará quando quiser. Poso juntar-lhe também um pouco de piedade, porque no fundo os cães nem têm mérito nem têm culpa. E ainda uma certa pena por ter dado conselhos de força e de altura a quem era fraco e baixo; mas não me parece ter perdido tempo: se os conselhos não servirem a você, a mim serviram; que bem preciso deles e ninguém mos dá.

Da Exigência, "Sete Cartas a Um Jovem Filósofo" in Citações e Pensamentos de Agostinho da Silva, Casa das Letras, Março 2010, organização de Paulo Neves da Silva.

5 comentários:

  1. Gostei da escolha do texto, da comparação com a vida de cão- Bom post!

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  2. O Agostinho da Silva era um génio. Nem sempre muito bem entendido entre nós. Houvesse (ou antes: tivessem havido) em Portugal mais alguns como ele e a nação, os portugueses, basicamente, seriam outros... Como ele, embora noutra vertente mas de igual genialidade, apenas o Fernando Pessoa. Mas quem raio sou eu para estar pr'aqui com "coisas"?... ;)

    Um beijinho, obrigado pla visita e comentário(s); vemo-nos no Twitter.

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  3. Entretanto, gostava de comentar no teu blog mas não estou a conseguir. :/

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  4. :) meu amigo Z., também admiro muito o Agostinho da Silva :) o que leio dele, nas vezes em que não é genial, põe-me a reflectir com uma curiosidade risonha :))) Boa escolha este texto!

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  5. Olá Dalaiama e origado. Como já escrevi algures (aqui e no Twitter, por acaso), fazem-nos falta mais Agostinhos da Silva para (ajudar a) abrir os olhos de todos nós. Ainda ando a ler o "Citações e Pensamentos" dele e quase a cada frase, de tão certeira e "óbvia" (se ponderarmos *mesmo* no que escreveu), me apetece gritá-la aos ventos. Como tenho vergonha de o fazer, limito-me a reproduzi-lo — mas com calma, não vá a Gabriela Canavilhas lembrar-se de taxar também (ainda mais) a literatura impressa, sob pretexto de "proteger" os direitos dos seus autores... :p

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